Insondável


Marlene Marques Ávila

Entrei na vida dela há muito tempo, já se passaram mais de cinquenta anos. Não sei em qual momento ela percebeu o meu propósito, mas ela percebeu, e aceitou.
Na aceitação, se doou, completa e inexoravelmente, fez da minha, o sentido da vida dela. Andou por mim, pôs na sua boca minhas palavras nunca ditas, chorou, rezou, se entristeceu quando me viu triste, se alegrou comigo, xingou, se enraiveceu, pediu perdão, me cuidou mesmo já homem feito, como se fosse um pequenino, foi meu mar e tábua de salvação.
Algumas vezes me deixava mas logo voltava, nunca distância alguma foi suficiente para impedir a volta, até aquela vez em que a vi sair, levada contra a vontade, mas não tinha mais forças, seus olhos me penetraram uma ultima vez, como a se desculpar, levou minha imagem nas retinas. As lágrimas incontidas balançavam seu corpo, eu assisti a tudo sem compreender, e foi a última vez que a vi.
Quanto tempo passou? Em minha inabilidade para contar os dias, não saberia dizer, foram muitos. Mesmo sendo algo impensável, um dia a chamei, sim, o som foi audível, as pessoas à minha volta se emocionaram, “olha, está chamando por ela”, mas foi em vão. Por que ela não me levou junto, nunca entendi, não faz nenhum sentido, se ela não voltou é porque meu propósito foi cumprido. Como posso continuar aqui?
Nunca me queixei, aquelas paredes encerravam meu mundo, não havia do que me queixar, estava tudo ali. O mundo do lado de fora, sim, ela me levou para vê-lo algumas vezes, nada significava, gostava mesmo de estar à vontade no meu lugar.
Ali continuei, e os dias se sucederam. Cuidaram de mim, não como ela, mas fizeram o melhor que puderam. Alimentar, talvez fosse o mais trabalhoso, eu até tentava ajudar, mas acabava atrapalhando mais; me lavar, arrumar para dormir. A casa ficava escura, mas nem sempre eu dormia, ficava ali, quietinho, sabia que dava muito trabalho cuidar de mim e as pessoas precisavam descansar.
Um dia lembrei de uma vez que ela ficou algum tempo sem me ver porque não podia levantar. Com grande esforço consegui ir até o quarto, mas não, ela não estava lá. Outra vez me levaram para algum lugar, pensei que a encontraria, de novo me enganei. Voltei triste para o meu cantinho, aos poucos fui tendo a certeza que não mais a veria. Ela não voltaria.
E mais dias se passaram, estava cansado. Já tinha ficado tempo demais aqui e o sentido da minha existência se perdera. Resolvi partir, algumas pessoas ficariam tristes, mas não mais que eu me sinto agora. Tenho que ir, talvez a encontre. Talvez!

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Marlene Marques Ávila

E-mail: marquesavilamarlene@gmail.com

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