Decisão


Marlene Marques Ávila


Chovia torrencialmente há seis dias. A defesa civil lançara alertas para todos saírem de casa, e procurar os abrigos. Isto seria na verdade abandonar a casa, mas como fazer isso? Ali estava tudo o que tinha, não apenas os bens materiais, em cada recanto a lembrança de algo vivido, um sorriso, um pedido, um abraço, ou mesmo uma dor, uma lágrima, lembranças dos pedaços de que é feita a vida, estava tudo ali.
Os bens materiais poderiam ser repostos, mas e se a água levasse a casa? Morara ali toda a sua vida, sonhos e conquistas, perdas e superações. Naquela sala, ela e o marido tiveram longas conversas; por aquela porta entraram juntos para compartilhar uma vida inteira, por ali também ele saiu uma última vez. Ela sempre pensou que sua passagem final faria por aquela porta, talvez ele a esperasse em algum lugar além. Quem sabe os mistérios que unem a vida e a morte, mas uma coisa sabia precisava sair por aquela porta.
Estava perdida nestes pensamentos, quando ouviu mais uma vez os brados: “tem alguém aí?”. Respondeu para si mesma, tem eu e minha vida e tudo o que restou dela, e não pretendo deixá-la aqui. Mergulhou novamente nas lembranças, nos filhos agora distantes, o que era de certa forma um alívio, a tirariam a força de sua casa, tinha certeza. Cresceram nesta casa, ali o quarto de Dora, do outro lado o de Tarso, crianças lindas, adolescentes normais e adultos resolvidos. Seguiram seus rumos, um morava na Espanha, a outra fazia um doutorado na França, nenhum pretendia voltar ao Brasil.
Desde que a enchente começara ligavam diariamente, ela os tranquilizava, “estou bem, não se preocupem, a água não atingiu nossa casa”. Do lado de fora, cada dia a água subia um pouco mais, se continuasse naquele ritmo, logo atingiria o andar de cima onde se refugiara.
Na sétima noite o cansaço a venceu, ela dormiu a maior parte da noite, acordou sobressaltada, a água chegara enfim ao seu refúgio. Olhou ao redor, o tapete completamente encharcado, a cadeira da escrivaninha girando sem rumo. Foi até ao banheiro, lavou o rosto, passou um batom, beliscou as bochechas, estava bem. A parte inferior do guarda-roupa já estava submersa, mas os vestidos no cabide ainda estavam secos, procurou um que gostava muito, vestiu e pegou o celular. Fechou as cortinas da janela e dali fez uma chamada de vídeo para os filhos, veriam como estava bem, era assim que queria ser lembrada.
Procurou sua playlist preferida, queria ouvir Raindrops keep falling on my read. Era a música de seu amor, a ouviram pela primeira vez no cinema, não lembrava agora o nome do filme, mas a cena de Paul Newman andando de bicicleta com a mocinha ao som da canção foi repetida várias vezes por ela e Pedro. Estavam então no começo do namoro, tão cheios de sonhos e esperanças, muitas realizadas, sim, a vida fora gentil com eles.
Aumentou o volume no celular e começou a dançar, a água já atingia seus joelhos mas a música a enlevou, Pedro a envolveu, sim ele estava ali, cantava baixinho em seu ouvido
"raindrops keep falling on my head/ but that doesn’t mean my eyes will soon be turning red/ crying’s not for me...”
Giravam, giravam, ele a abraçou com força, cantaram juntos, “because I never gonna stop the rain by complaining/ because I’m free/ Nothings worrying me".

voltar

Marlene Marques Ávila

E-mail: marquesavilamarlene@gmail.com

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose